Chegou no início da tarde e acomodou-se ali no último compartimento da minha prateleira que
ficava encostada no meu tanque de lavar roupa. Sequer me pediu licença. Decerto
já sabedora da minha paixão por seus iguais. Para ser mais exata, de minha
enorme paixão por todas as criaturas do Uno.
A
princípio arredia. Bastava que ela ouvisse minhas passadas para cair no mundo
como se só a minha presença a colocasse em perigo real. À medida que eu fui me
aproximando sem fazer barulho, pé ante pé, de mansinho, passinhos sonoros para
não assustá-la, ela foi se assentando e aceitando a minha presença. Não me
evitava mais. E eu, de minha parte tentava fazer o menor ruído possível ali na
área de serviço. Não sacudia mais, depois de lavadas, minhas sacolas plásticas
para não levantar suspeita de perigo na minha inquilina.
No
entanto, ela só aceitava a mim. Bastava que chegasse visita para ela fugir em
vôo disparado. E, assim, foi ficando, foi ficando e um belo dia ouviu-se o
ruído denunciador da minha condição de avó. Haviam nascido dois.
Minha
mãe com experiência na área sentenciou, assim os viu:
—
São macho e fêmea.
—
Por que sabe? Fiquei curiosa
— O
macho é maior e mais forte.
Batizei-os
de Leo e Léia.
O
que mais me encantava naquela família era a dedicação total da recém-mamãe.
Saia
logo cedo e após uma hora mais ou menos voltava com o papo cheio de comida para
os filhotes. E ficava lá em cima deles esquentando-os, o restante do dia.
Porém,
um dia, saiu e não voltou. Só comecei a me preocupar por volta do meio dia.
Disse para minha mãe que aquilo não estava certo, ela havia abandonado os
filhotes que ainda não voavam.
Eu
olhava ao redor, em cima da casa, no arvoredo próximo e nada da mãe fujona.
Afligi-me
com aquela traição e fui para a internet ver o que podia fazer. Que comida dar
para os filhotes, enfim, eu tinha de suprir, como avó, a ausência da mãe
desnaturada.
Encontrei,
para meu espanto, vários relatos de abandono de ninhos pelas mamães rolinhas:
São
‘levianas’, pensei de pronto. Muito magoada e com um enorme dó dos dois
pequerruchos despenados, considerei seguir um dos conselhos de um tratador de
filhotes órfãos: mingau de fubá sem sal. Quando a papa ficou pronta minha mãe
recomendou;
—
Coloque bem perto deles, pois eles não vão deixar você pegá-los para colocar
goela abaixo.
Assim
que me aproximei qual não foi meu espanto quando eles assustados, ensaiaram um
vôo e caíram desajeitados no chão com grande estardalhaço e por mais que eu
tentasse não conseguia pegá-los. Rápidos eles se escondiam entre as bacias e
baldes e quando eu conseguia retirar o que me estorvava alcançá-los, eles
pulavam para debaixo de outra vasilha. Ficamos lá nessa luta inglória muito
tempo, até que desisti e deixei a comida no chão bem à mostra de seus olhares
famintos assim que eles resolvessem sair do esconderijo, por conta da fome.
Sai
para resolver uns problemas no banco e quando regressei encontrei a mãe andando
pelo quintal, vagarosamente como se carregasse o peso do mundo.
Fiquei
catatônica.
— Como
assim, você não havia sumido?
Ela
me olhou demoradamente e eu li naquele olhar a pergunta?
— O
que você fez com meus filhotes?
— Eu
tentei alimentá-los e eles fugiram, estão por aí debaixo das coisas. Respondi
amargurada.
Ela
ficou por ali muito tempo e nada de localizá-los. Então resolvi procurá-los
para mostrar pra ela que eles estavam ali mesmo escondidos.
Não
os localizando, chorei.
— Perdoe-me.
Pedi aflita para a mãe. Será que você consegue me perdoar? Implorei para aquele
olhar postado em mim doloridamente.
Após
vários minutos ela desistiu e partiu. E eu fiquei remoendo a minha dor de haver
interferido na didática de ensino da ave. Certamente ela saíra para dar aos
filhotes a oportunidade de se virarem sozinhos. Era um meio de forçá-los a
saírem para o primeiro vôo a demora do retorno.
Passei
o restante do dia moída de remorso. Até pareceu-me que eu tinha declarado a
terceira guerra mundial e estava à beira de acabar com toda a vida do planeta
terra, tal era a minha dor.
À
noitinha saí para dar mais uma olhadela em torno da extensa casa, comprida a
perder de vista, e para minha surpresa, avistei o macho, em cima do telhado da
cozinha, bem rente à cumeeira de separação com a sala de jantar. Gritei de
alegria.
—
Léo, você voltou pra vovó.
Ainda
em estado de êxtase supliquei esperançosa.
São
Francisco de Assis, protetor dos animais, me ajude a encontrar a Leia.
Ele
me atendeu prontamente. Léia saiu debaixo do tanque dando saltinhos miúdos,
sinal da sua fraqueza por falta de alimentos. Consegui pegá-la desta vez e
depois de alimentá-la com uma pequena colher boca a baixo, joguei-a para cima
em direção ao telhado. Ela ensaiou um meio voo e parou em cima da casa.
— Léo,
cuide da sua irmã até sua mãe voltar, por favor, querido.
Eu
tinha certeza que a Budiudiuca voltaria para resgatar os filhos, e ali em cima
do telhado era mais fácil avistá-los.
De
vez em quando eu saia ao terreiro para ver como eles estavam se saindo. Lá
pelas tantas da noite, não conseguindo dormir, voltei ao terreiro e fiquei
demasiadamente comovida: eles estavam tão próximos um do outro como se tentassem
suprir um pro outro a falta da mamãe.
—
São Francisco, por que a budiudiuca ainda não veio cuidar deles? Perdoe-me a
insistência, mas eu preciso que ela volte, a culpa foi minha. Ou então faça com
eles arrisquem um vôo e sejam vitoriosos.
Fui
dormir depois da minha oração muito esperançosa, tenho muita fé no Santo
protetor dos meninos irracionais (ou não)? Confesso que ainda alimento muitas
dúvidas a esse respeito. Acho que eles pensam e amam como nós humanos, só não
desenvolveram a linguagem de palavras.
Ao
acordar, corri para vê-los e fui presenteada com uma maravilhosa surpresa: no ninho, que eu
não tinha tido a coragem de desfazê-lo, encontravam-se mãe e filha. Ela aconchegada
debaixo das asas, só se via a sua pequena cabecinha. A mãe me olhava fixamente.
Chorei desta vez de alegria.
—
Eu te amo São Francisco. Preciso dizer que beijo teus pés e tua boca, se puder,
claro.
Léo
não estava lá. Mas a mãe me olhou tão calmamente que eu compreendi o que ela me
dizia.
—
Meu filho agora é dono do espaço, ele se foi.
Corri
a contar para minha mãe que sentenciou:
—Léo
voltará, fique tranquila.
Minha
irmã não concordou.
—
É claro que não volta, ele é novo e não tem noção de rumo, de espaço. Ele se
foi pra sempre.
Nós
três, eu e as duas aves fêmeas, ficamos num namoro demorado e apaixonado
durante a manhã toda. De vez em quando eu ia vê-las e lá no meio do dia em um
dos meus regressos no quintal, não as vi, elas não estavam mais lá.
—
Foram embora. Nunca mais vou ver nenhum dos três. Fiquei aliviada e feliz pelo desfecho, só que eu teria uma
alegria ainda maior...
À
tardezinha, fui recolher minhas roupas que já haviam secado e me deparei com a
cena mais bela de toda a minha vida. Estavam os três em cima do telhado e em
vôos curtos e rápidos, mas numa bela coreografia ensaiada.
Estão
se despedindo de mim. Tive a certeza disso e gritei.
—Sejam
felizes e se cuidem. O céu é o limite. Amo vocês do fundo do meu coração.
Decorridos
três dias, ela voltou passeando pelo chão, deu a volta no quintal todo e de vez
em quando me olhava.
— Desmamei-os.
Eles agora são donos de suas vidas.
No
dia seguinte, apareceu com um galho no bico. Eu a toquei desta vez.
— Vamos
nos mudar pequena, não posso deixar a prateleira pra você. Procure outro lugar
pro seu ninho, me perdoe.
No
dia mudança, eu fiquei pra trás aguardando o caminhão enquanto eles colocavam a
mobília no baú e então, ela chegou.
Ficou
em cima do muro do outro lado da rua, andando de um lado para o outro, parava e
me olhava, muitos, muitos minutos.
— Vou
sentir muita saudade Budiudiuca. Acho que desta vez não nos veremos mais. Você
não saberá pra casa eu fui e eu não tenho como te levar não é mesmo?
Ela
veio para a árvore defronte a casa e pousou no galho mais baixo. Ficou lá até o
caminhão sair.
—
Meu
coração é seu, pequerrucha.
O
caminhão foi embora e eu saí, também, olhando pra trás. Ela ficou lá no galho
quieta como se com isso fizesse com que eu mudasse de idéia de partir.
Embora, talvez ninguém acredite nisso, eu posso provar. Minha mãe e minha irmã são testemunhas
vivas desse meu caso de amor.
Depois
de vários meses na residência nova, minha mãe me chamou.
— Vem
ver quem está aqui.
Minha
amada filha Budiudiuca e seu companheiro. Eu soube assim que a vi. Meu
coração a reconheceu. Eles estavam em cima do muro nos fundos da casa e fui lá
conversar com ela.
— Minha
casa é muito pequena agora e a prateira está cheia de louças que não couberam
na cozinha minúscula. Não tem espaço pro seu ninho aqui, mas você tem um vasto
mundo pra isso e não ficará com raiva da mamãe, não é mesmo?
Após
alguns minutos eles se foram, mas de vez em quando ela volta e o nosso namoro
de mãe e filha continua.
Autora: Eleni Mariana de Menezes